Escravos da Miséria
À margem da rodovia
BR-226, a 06 km de Currais Novos, no Seridó Oriental do Rio Grande do Norte, um
grande artefato de cerâmica, em forma de panela, sinaliza a entrada da mais
pobre comunidade remanescente de quilombos do estado: o Sítio Bom Sucesso,
conhecido como “Negros do Riacho”.
Artefato na entrada da comunidade |
Da entrada até a
comunidade rural distam ainda 06 km em estrada carroçável, que são percorridos,
diariamente, pelos comunitários a pé, em lombo de animais, em carroças, de
carona em motos ou veículos, em direção a cidade onde buscam acesso aos
benefícios das políticas públicas e praticam a mendicância.
Comunidade Negros do Riacho |
Isolados numa ilha de miséria de 03 hectares, cercados
por ricos fazendeiros por todos os lados, os “negros do riacho”, ocuparam o
território, fugindo do flagelo da escravidão, provavelmente na segunda metade
do século XIX, conforme relata Laurentino Lopes da Silva, 94 anos, único filho
vivo do patriarca José Trajano. “P.”, filha de Seu Laurentino, uma das
lideranças da comunidade, informa a situação de pobreza em que se encontra seu
povo, afirmando que “o programa do leite ainda distribui o produto, mas feira é
só aqui e acolá”.
Visita domiciliar |
Simpática e agradável,
P. recebeu a equipe multiprofissional para falar sobre os principais problemas de saúde dos comunitários. Como
o psiquiatra sanitarista Epitácio Andrade, afirmava que as doenças infectoparasitárias
e o alcoolismo são mais prevalentes nas situações de pobreza, P. com sua
ingenuidade perspicaz, perguntou-lhe se “era médium”. O médico sorrindo,
percebeu que por trás da pergunta estavam sentimentos de vergonha e timidez,
que a impediam de expressar sua verdadeira crença religiosa de matriz
africana, desestimulada e “invisível” na negritude do riacho.
A equipe identificou casos
de alcoolismo, mas não evidenciou comportamentos violentos. Por outro lado,
ficou explícita a ociosidade a que está exposta a comunidade. Um comunitário,
sob efeito de umas “choradeirinhas”, enquanto pedia “trocados”, divertia-se e
aos visitantes colocando uma volumosa pedra de granito sobre sua cabeça. De
início, a assistente social Candice Guedes ficou com medo que se pudesse
atirar a pedra contra a equipe, até ouvir a interpretação do psiquiatra: “Esta pessoa
é um ator em potencial, sua brincadeira é puro teatro”. Candice passou a
fotografá-lo com tranquilidade e a mesma a posar com desembaraço. Depois pareceu
fácil entender que aquelas atitudes infantilizadas, produzidas pela ociosidade
dominante na coletividade, poderão ser superadas com oficinas culturais.
Campo de Futebol |
O futebol, principal
esporte nacional, que imortalizou o negro Edson Arantes do Nascimento, “Pelé”,
como um dos maiores atletas mundiais de todos os tempos, não atenua o problema
do alcoolismo na comunidade, nem se constitui em alternativa para melhorar a
qualidade de vida dos comunitários, nem é uma opção de lazer, nem uma
possibilidade de renda para os “negros do riacho”. Simplesmente é mais um
estímulo ao alcoolismo, porque não é planejado como uma atividade educacional,
nem encarado como prática desportiva pelo poder público. O descaso com o
esporte está evidenciado no campo de “pelada” da comunidade: a estrada de
acesso passa pelo meio do “estádio”.
Por razões que não se
conseguiu esclarecer, a maior parte das famílias do quilombola não está
inserida nos critérios para pagamento da taxa mínima de eletrificação rural,
chegando-se a pagar uma média de 40 a 80 reais/mês por família. Algumas
residências estão sem fornecimento de energia elétrica e outras não têm ligação
com a rede elétrica da companhia energética no estado.
Sede social está fechada |
A organização social dos
Negros do Riacho é extremamente frágil. A sede do Centro Comunitário foi
construída em 1994, com ajuda de religiosos alemães, e restaurada pela
Prefeitura de Currais Novos em 2005. Permanece fechada a maior parte do tempo,
e, praticamente, não ocorrem reuniões. No ano seguinte à restauração, a
Fundação Palmares reconheceu a comunidade como remanescente de quilombos.
As condições de
vida da população quilombola são, por demais, precárias. Para “P.”,
depois da morte de Dona Tereza, há cerca de quatro anos, acabou a produção de
cerâmica. Dona Tereza foi uma líder comunitária e espiritual dos Negros do
Riacho, e mantinha em funcionamento um centro de artesanato, que gerava alguma
renda para as mulheres, principalmente. Nos dias de hoje, em agosto de 2011, o
centro de produção artesanal está desativado.
Jovens no carteado na sede do centro de artesanato |
O centro de artesanato foi
entregue a comunidade sem reboco e sem piso de cimento. Durante a visita da
equipe, foi possível constatar que os jovens comunitários permaneceram jogando
baralho no alpendre do centro até a saída dos profissionais. A ociosidade é
preenchida por práticas não-produtivas. Não foram identificadas práticas
reflexivas, porém foram relatadas experiências sobre a formação de grupos de
capoeira.
A ausência
de atividades produtivas é determinante para a ociosidade. A agricultura de
subsistência, praticamente, não existe, assim como inexiste horta comunitária.
A educação para jovens e adultos está desativada. Resta para essa clientela o
lazer do carteado.
Na comunidade não tem
escola, nem creche. As crianças estudam numa escola de uma comunidade rural
vizinha, porém passam a maior parte do tempo em casa, sob os cuidados das mães.
Visita domiciliar |
A matrícula das crianças
na escola parece ser uma das estratégias de sobrevivência das famílias, cuja
intenção é auferir os benefícios das políticas compensatórias, tipo
bolsa-escola. Não foram encontrados estudantes universitários na comunidade,
que pudessem se beneficiar da política de quotas.
As condições
sóciossanitárias da comunidade são extremamente deficitárias. Das 48 famílias
que vivem no pequeno território quilombola, a maioria não dispõe de fogão a
gás, nem de geladeira. Grande parte utiliza o fogão a lenha para cozinhar seus
alimentos. A lenha é colhida nas proximidades das residências agravando a
tendência desertificadora da região, com um atenuante, que é a extração da
madeira da algaroba, árvore de adaptabilidade favorável no semi-árido
nordestino.
Lenha de Algaroba |
Não são desenvolvidas
ações de educação ambiental, voltadas para a preservação do meio ambiente e/ou
para a utilização racional dos poucos recursos naturais. Não há coleta de lixo,
nem tão pouco, coleta seletiva. O lixo se acumula no entorno das residências,
onde as crianças “brincam”, ou melhor, conseguem se divertir, na companhia dos
animais domésticos.
Lixo peri-domiciliar |
A maior parte das casas
tem aparelho de televisão e antena parabólica, porém a audiência é voltada,
basicamente, para as telenovelas e para o noticiário policial. O telejornalismo
tem pouca audiência. Existem aparelhos de rádio que sintonizam as emissoras de
radiodifusão AM de Currais Novos. Não existe radiodifusão comunitária. Não foi
percebida a existência de computadores que pudessem permitir acesso as mídias
sociais. O acesso a comunicação midiática não tem favorecido ao desenvolvimento
da consciência crítica da comunidade, apesar de em 2006, ter recebido o
reconhecimento de auto-afirmação quilombola pela Fundação Palmares.
Nas paredes das
casas ainda existiam fotografias de candidatos que foram votados pelos
comunitários, em resposta a ações assistencialistas praticadas como doação de
gêneros de primeira necessidade, como alimentos, dinheiro, calçados,
dentaduras, óculos, dentre outros, conforme relatos em conversas informais com
a equipe. A comunidade faz elogios a alguns políticos, afirmando dever-lhes
favores por benefícios recebidos.
Placa do auto-reconhecimento |
A partir da data de
auto-reconhecimento, foi intensificada a substituição dos casebres de taipa por
casas de alvenaria, porém a qualidade dos materiais utilizados foi, no mínimo,
duvidosa, uma vez que a maioria das residências apresenta rachaduras e
infiltrações, com comprometimento da estrutura arquitetônica, sabendo-se que a
área não apresenta histórico de sismicidade importante.
Habitação com rachadura |
Sem energia elétrica |
A criação de caprinos é
uma das poucas atividades de subsistência desenvolvida por algumas famílias da
comunidade. É desenvolvida de forma extensiva, ocupando a área do entorno das
residências, e envolve todos os membros da família.
Dessalinizador |
A preciosidade da água no
semi-árido não pareceria ser um problema para os “negros do riacho”, se não
fosse “salobra”. Captada em poço artesiano, pela força eólica de um cata-vento,
e impulsionada até uma caixa d’água de 20 mil litros, por uma bomba elétrica
nos canos de uma adutora, a água para consumo chega às residências em latas
d’águas conduzidas por mulheres em suas cabeças.
A salinidade da água é, parcialmente, tornada
palatável, pela ação de um velho dessalinizador, sem manutenção, que fica ao
lado da caixa d’água. Como as famílias não possuem filtros, a água consumida
não é filtrada. Como utilizam fogão a lenha, dificilmente a água é fervida. A
falta de tratamento da água para consumo humano favorece o surgimento de
infestações parasitárias e de doenças infecciosas, como hepatite e
gastroenterocolites.
A má utilização da água
foi flagrada durante a visita multiprofissional, onde se constatou o
desperdício d’água do reservatório principal, que fica transbordando
constantemente, drenando o precioso líquido, para quem precisa menos: a
caatinga.
Desperdício d'água |
Os recursos hídricos
disponíveis não são utilizados para o desenvolvimento de atividades produtivas.
Não existe produção local de hortifrutigranjeiros. Um reservatório, tipo
“tanque”, com capacidade para mais de 50 mil litros, idealizado para a
piscicultura não funciona, permanecendo vazio e, portanto, sem peixes.
Tanque vazio |
A sede comunitária dos
Negros do Riacho, que permanece fechada a maior parte do tempo, fica vizinha ao
sistema de abastecimento d’água (reservatório e dessalinizador). Teoricamente,
facilitaria a gestão das águas para o consumo humano e para atividades
produtivas, mas, praticamente, não há nenhum planejamento para a utilização dos
recursos hídricos, visto que a água chega até as residências em latas d’águas
nas cabeças femininas e não é distribuída para a produção econômica.
Sede social e caixa d'água |
No pátio da sede
comunitária, existe um piso de cimento, em formato circular, que já foi
utilizado como “roda de capoeira”. Como não tem cobertura, e os comunitários
não têm calçados apropriados, o escaldante sol do sertão impede a utilização
deste precário espaço social. A inadequação dos espaços coletivos da comunidade
é mais um motivo para justificar o deslocamento dos negros do riacho à zona urbana de Currais
Novos, onde permanecem, em sua maioria, nas proximidades do mercado público,
quase sempre, pedindo esmolas.
Espaço sem cobertura para capoeira |
O fluxo constante
dos comunitários à zona urbana expõe ao alcoolismo, a persistência do status de
inferioridade e a violência urbana. Um jovem com 16 anos, há cerca
de 10 meses, após ingesta excessiva de bebidas alcoólicas na cidade, ao
regressar à comunidade foi atropelado na BR-226, e ainda hoje convalesce de uma
fratura exposta na perna esquerda.
O patriarca Laurentino não
estava na comunidade na ocasião da visita. A historiadora Maria do Socorro
Fernandes Cruz, componente da equipe multiprofissional do ambulatório de saúde
mental da Secretaria de Saúde de Currais Novos, juntamente com a técnica em
enfermagem Amanda Cecília de Souza Araújo, percebendo as difíceis condições
para ter o direito de envelhecer na comunidade, chegaram a aventar a
possibilidade de o ancião estar no abrigo de idosos da cidade, mas essa
hipótese foi descartada por familiares.
Equipe interdisciplinar em visita domiciliar |
Depois da visita à
comunidade, ficou claro: “Negros do Riacho” sempre foi uma peça publicitária
dos governos. A realidade da comunidade é muito diferente. Há imensa demanda
social nesta coletividade que vive abaixo da linha da pobreza. Para compreender
a realidade é necessário parodiar o poeta: “A panela está cheia de ratos... As
idéias sobre os negros do riacho não correspondem aos fatos”.
Currais Novos/RN, setembro de 2011.
* Breve diagnóstico situacional da Comunidade "Negros do Riacho", formulado por Epitácio de Andrade Filho (Médico Psiquiatra Sanitarista), Candice Guedes (Assistente Social), Maria do Socorro Fernandes Cruz (Historiadora) e Amanda Cecília de Souza Araújo (Técnica em Enfermagem).
Traços da ausência de politicas públicas que atendam a esta população. Infelizmente a insegurança alimentar e nutricional também faz parte dos determinantes que assolam esta comunidade. Como diz Campos (2006) "É no campo que se encontram os maiores índices de mortalidade infantil, de incidência de endemias, de insalubridade, de analfabetismo e, que essa imensa pobreza decorre das restrições de acesso aos bens e serviços indispensáveis à reprodução biológica e social, à fruição dos confortos
ResponderExcluirproporcionados pelo grau de desenvolvimento da sociedade".
Lana Dantas (Nutricionista, formada pela UFRN).
Que documentário maravilhoso!!!
ResponderExcluirQue documentário, Doutor!! Quando fiz faculdade de Letras em Currais Novos, o máximo que ouvi dos negros é que mantinham as suas tradições. O seu documentário mostra outros meandros, outros aspectos importantes, um estudo mais profundo daquele arremedo de QUILOMBO.
ResponderExcluir